Há algo de melancólico pairando no ar de Manchester quando os ventos de janeiro sopram pelas arquibancadas vazias do velho teatro. É nessa época que os dirigentes, envoltos em suas gravatas vermelhas e calculadoras douradas, decidem o futuro do clube. E é também quando a síndrome do “terrapremierismo” se manifesta com toda sua força irracional.
O termo, cunhado por mim mesmo, ecoa como um diagnóstico certeiro: assim como os terraplanistas negam a esfericidade do mundo, os “terrapremieristas” insistem em acreditar que o universo futebolístico é plano, limitado às quatro linhas das ilhas britânicas. Tudo o que existe além do Canal da Mancha parece distante, duvidoso, inferior.
Bryan Mbeumo e Matheus Cunha chegaram a Old Trafford carregando não apenas suas qualidades — que são indiscutíveis —, mas também o peso de cifras astronômicas. Suas performances excepcionais na última temporada justificaram, em parte, a valorização no mercado. Mas eis que surge o paradoxo: quando Viktor Gyokeres marca gols em cascata na Liga Portuguesa ou Benjamin Sesko brilha na Bundesliga, são considerados “caros” porque não foram “provados na Premier League”. Como se o talento precisasse de um carimbo inglês para se tornar autêntico.
É o velho conto do vigário britânico, na falácia secular de que “the football comes home”. O futebol nunca saiu de casa porque nunca teve uma casa única. Ele nasceu nos pátios das escolas inglesas, cresceu nos campos de várzea do Brasil, amadureceu nos estádios da Argentina e se aperfeiçoou nos centros de treinamento da Espanha. É um idioma universal que não reconhece fronteiras nem passaportes.
O Manchester United, clube que um dia soube garimpar diamantes em Sporting Lisboa — um tal de Cristiano —, ou pescar pérolas no futebol francês — Cantona, o rei —, agora parece acreditar que só há ouro nas minas de Brighton ou Wolverhampton. Esquece-se de que Scholes aprendeu suas primeiras jogadas nas categorias de base de Old Trafford, que Giggs foi moldado nas próprias instalações do clube, que a Classe de 92 nasceu em casa.
A ironia é cruel: enquanto o clube finalmente consegue se livrar da síndrome do “inglesismo” — reconhecendo que Shaw, Mount e Sancho não eram as panaceias que se imaginava —, cai na armadilha do “terrapremierismo”. Troca uma ilusão por outra, um preconceito por outro.
O futebol é arte, e a arte não conhece geografia. É como pretender que só existe música boa gravada em estúdios londrinos ou que a literatura de qualidade só pode ser escrita em inglês. Mbappé não precisou jogar no Crystal Palace para provar seu valor. Messi jamais pisou em Burnley e ainda assim conquistou Old Trafford. Haaland veio direto de Dortmund e fez a Premier League tremer.
A verdadeira sabedoria está em criar, não apenas em comprar. Está em formar, não apenas em contratar. Está em confiar no processo, não apenas no produto final. Quando um clube para de acreditar em sua capacidade de desenvolver talentos, quando terceiriza essa responsabilidade para times menores da própria liga, está, na verdade, confessando sua pequenez.
Old Trafford já foi berço de lendas, laboratório de sonhos, universidade do futebol. Suas arquibancadas vibraram com jovens que chegaram descalços e saíram imortais. O teatro dos sonhos não pode se transformar em mercado de pulgas, onde só se compra o que já está pronto, testado e aprovado pela concorrência local.
O mundo é redondo, o futebol é global, e o talento não tem CEP. Que os ventos de Manchester tragam essa sabedoria de volta aos corredores de Old Trafford, antes que o “terrapremierismo” enterre de vez a magia de descobrir estrelas onde ninguém mais consegue enxergar.
Afinal, como diria o poeta, não são os céus ingleses que fazem chover talentos — é a coragem de olhar além do horizonte que faz nascer campeões.
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